Leite: necessidades do produtor estão longe de ser atendidas

É consenso na cadeia leiteira que um dos principais gargalos para a atividade deslanchar no país é a falta de assistência técnica para o produtor. Políticas públicas e privadas são inúmeras e há exemplos de sucesso em vários Estados.

Entretanto, por motivos diversos, entre eles falta de recursos e mudanças políticas e econômicas ocorridas de quase três décadas para cá, a assistência técnica no Brasil ainda não funciona de maneira coordenada e efetiva. É um fato a se lamentar, quando se observam estudos que apontam que produtores assistidos regularmente conseguem renda até 362% maior por hectare em relação àqueles que não recebem, conforme o economista da Universidade de Brasília Mauro Eduardo Del Grossi.

A mais recente tentativa em âmbito nacional para superar esse obstáculo é a Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater), instituída em maio de 2014, ainda no governo de Dilma Rousseff, após um vácuo de 25 anos – desde que o ex-presidente Fernando Collor de Mello extinguiu a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater). A principal medida da Anater, este ano, é lançar chamadas públicas para atrair órgãos públicos e privados a prestar assistência a pelo menos 200 mil famílias de agricultores familiares, explica o diretor administrativo, Ricardo Demicheli. “O foco inicial é trabalhar com produtores das Regiões Nordeste, norte de Minas Gerais e norte do Espírito Santo, não especificamente com o leite”, disse. “Mas é bom lembrar que pelo menos 95% deles, embora em pequena escala, trabalham com pecuária leiteira.”

Cerca de R$ 200 milhões serão empenhados este ano para as chamadas públicas. A ideia é atrair órgãos que já trabalham com assistência técnica, como as Empresas de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), além de consultorias e outras instituições que têm trabalhos voltados a agricultores familiares. “Entre as orientações que serão dadas aos pecuaristas está, por exemplo, eles passarem a adotar a suplementação alimentar do rebanho”, exemplifica Demicheli. Ele conta, também, que para estimular o cooperativismo será lançado o programa Mais Gestão. “Vamos contratar empresas que darão conformidade a cooperativas e associações de produtores, lembrando que o associativismo resulta num efeito direto sobre a cadeia produtiva do leite.”

A Emater do Rio Grande do Sul, uma referência em assistência técnica ao produtor de leite no país, é uma das entidades que pretendem participar da chamada pública da Anater este ano. “Estamos esperando a publicação do edital para ver em que condições vamos concorrer”, confirma o zootecnista e assistente técnico estadual em Leite da Emater-RS, Jaime Ries. Garantir mais recursos para assistência técnica ao produtor rural no Estado é essencial. Especialmente para a cadeia leiteira. Dos 497 municípios gaúchos, 464 têm pecuária de leite, e a Emater- RS está presente em 438, informa. “O leite é o nosso trabalho de maior abrangência, alcançando os 27.500 produtores comerciais do Estado, de um total de 75 mil que também trabalham com leite de alguma maneira.” Ele conta que, assim como a Ater, o principal objetivo da instituição estadual é atender o agricultor familiar. E, no caso do Rio Grande do Sul, aquele que produz menos de 100 litros/dia. “Privilegiamos esse produtor menor, que está sofrendo uma pressão muito grande da indústria para aumentar as escalas e melhorar a qualidade da matéria-prima”, diz. “É importante que ele continue servindo uma cadeia que tem enorme importância social e econômica no Estado.”

Ries enfatiza como é determinante a assistência técnica na própria continuidade do produtor na atividade. “Concluímos recentemente um programa de três anos, voltado a produtores com menos de 100 litros/dia”, disse. “Tivemos um aumento significativo na produção média do grupo. Mas o principal resultado foi conseguir mantê-los na atividade. Entre os que não participaram do programa, 19,3% deixaram a pecuária. Entre os que participaram, a taxa de desistência foi de menos de 3%.”

Conquistar o produtor – Apesar dos bons resultados obtidos no Rio Grande do Sul, profissionais ligados à cadeia leiteira assinalam a dificuldade em “conquistar” o produtor para que ele se “renda” a receber orientações e, em muitos casos, mudar totalmente a sua forma de produzir. “Tenho um exemplo de dois irmãos, produtores e vizinhos. Um recebe assistência técnica e está evoluindo bastante. O outro resiste, não quer saber, mesmo com o técnico dizendo que não cobraria nada”, ilustra o coordenador do Programa Balde Cheio do Senar no Rio de Janeiro, Maurício Sales. Ele comenta também que outro gargalo é a falta de capacitação de técnicos. “O profissional tem de ter conhecimento para mudar a realidade do produtor. Se ele não tiver competência para isso, o pecuarista acaba desanimando”, diz Sales. Atualmente o Senar-RJ tem 50 técnicos em treinamento, diretamente nas propriedades leiteiras, e mais 30 entrarão este ano, num programa que leva quatro anos. “Por isso destinar grande quantia de verbas para assistência técnica pode não ser suficiente para de fato mudar a realidade do produtor. Este é um trabalho de médio e longo prazos e que depende da competência do técnico e da concordância do produtor em receber assistência técnica”, defende Sales.

Um grande desafio na mudança da realidade do produtor está sendo vencido em Mato Grosso, onde a pecuária leiteira, apesar do enorme potencial, passa longe das principais atividades agropecuárias desenvolvidas no Estado, que é o líder em soja, milho e gado de corte do país. No setor leiteiro, seus números ficam bem atrás. Mato Grosso é o oitavo produtor de leite, com 618 milhões de litros, ou 3% do total, informa o Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (Imea). Além disso, das 33.860 propriedades produtoras de leite, apenas 2,9% contam com assistência técnica.

Parte do desafio de ampliar o número de pequenos produtores assistidos, porém, está sendo vencido pelo Senar-MT, por meio do SenarTec, iniciado em 2015. Com duração de dois anos – até o fim de 2017, portanto –, o objetivo inicial era atender 120 propriedades na região de Pontes e Lacerda, que é responsável por 43% do leite produzido no Estado. O município tem atualmente 920 propriedades produtoras de leite e 11 laticínios.

O superintendente do Senar-MT, Otávio Celidônio, comenta, porém, que a grande dificuldade de fazer o produtor aceitar a assistência técnica é provar que não necessariamente ele vai ter de fazer um monte de investimentos. “O produtor tem de entender que, antes de propor qualquer novo investimento, a assistência técnica focará na melhoria do trato dos animais, na gestão da propriedade, para, aí sim, ver quais são os gargalos da propriedade”, comenta. Em sistema de parceria, Celidônio diz que o Senar-MT já atende 120 produtores, principalmente em Pontes e Lacerda, e de forma gratuita. “O objetivo é chegar a 280 até o fim do ano”, comenta.

“A exemplo do que já ocorreu com cadeias de soja, milho e pecuária de corte no Estado, o leite também pode ganhar enorme importância”, destaca Celidônio. “Conseguindo demonstrar que nossos produtores têm potencial para deslanchar a atividade no Estado, poderemos atrair grandes investidores, como laticínios, para fazer a cadeia crescer. Potencial temos, além de pasto e grãos de sobra e baratos para alimentar o rebanho.” Celidônio adverte, entretanto, que o objetivo não é que a assistência técnica prestada pelo SenarTec seja sempre gratuita. “Nossa ideia é que o produtor cresça e admita o valor da assistência, e mais para a frente contribuir monetariamente à medida que tiver condições.”

Disseminação da inveja – Um programa também tocado pelo Senar, no caso o de Goiás, importante Estado leiteiro, está em estágio mais adiantado. É o Senar Mais, que atende sete cadeias produtivas (pecuária de corte, de leite, piscicultura, horticultura, fruticultura, bovinocaprinocultura e apicultura), sendo a principal a do leite – de um total de 1.400 produtores contemplados, 1.200 são pecuaristas leiteiros. O gerente de Assistência Técnica e Gerencial do Senar- -GO, Guilherme Bizinoto, destaca que, no Senar Mais, um técnico é responsável por atender de 25 a 30 produtores, diretamente na propriedade rural e gratuitamente. “Temos 59 grupos, o que dá em média 1.200 pecuaristas. Fazemos visitas mensais de quatro horas por visita, em média, propriedade por propriedade.”

Bizinoto conta que a evolução dos produtores com assistência técnica “é patente”. Ele informa que as técnicas utilizadas são as do Balde Cheio. “Esta metodologia garante que, a cada R$ 1 investido, o retorno pode ser de até R$ 20 em receita”, cita Bizinoto, em levantamento de 2011. A estratégia empregada para que o produtor aceite ser atendido – “E isso sempre tem de partir do produtor, de ele querer o nosso trabalho”, enfatiza – é a “disseminação por inveja”, brinca Bizinoto. “Para quebrar o tradicionalismo, promovemos visitas a produtores da região que estão recebendo assistência técnica e evoluindo. É uma boa forma de convencimento”, garante.

Outra questão essencial para que o produtor aceite a entrada do técnico na propriedade é o fato de o programa ser subsidiado – e gratuito. “Se o produtor fosse pagar pelo atendimento que prestamos, teria de desembolsar por ano em torno de R$ 5 mil a R$ 6 mil e a maioria não tem condições”, diz Bizinoto, comentando que cada produtor recebe assistência técnica dentro do programa por dois anos. “Depois ele tem capacidade de assumir essa despesa porque aumenta a rentabilidade”, diz. Bizinoto acrescenta que “está de olho” nas chamadas públicas da Anater, para inserir o Senar-GO na concorrência.

Pela proximidade com o produtor de leite, as cooperativas podem quebrar sua desconfiança e fazer com que eles aceitem receber orientações técnicas. Uma excelente iniciativa vem da Cooperativa Languiru, de Teutônia (RS). Atualmente, 1.340 produtores (que produzem 400 mil litros/dia) são atendidos pela cooperativa, por dez técnicos, em 70 municípios. O engenheiro agrônomo Fernando Staggemeier, coordenador do Setor de Leite do Departamento Técnico da Languiru, conta que a assistência técnica começou na cooperativa como uma forma de melhorar a qualidade do leite captado. A assistência é prestada por meio de atendimento particular mensal ou bimensal, conforme o pedido e o interesse do produtor. “Além disso, há atendimento em grupos, por meio de palestras, dias de campo e viagens técnicas”, diz.

Para Staggemeier, a assistência técnica é “fundamental”. “O segmento de leite é muito abrangente e suscetível a rápidas mudanças, em todos os sentidos”, disse. “Há várias mudanças em legislações e normativas, além de, em determinadas épocas, a margem de ganho se estreitar bastante. Isso obriga o produtor a se profissionalizar cada vez mais.” Ele garante que, por maior que sejam as informações disponíveis atualmente, “nada substitui” a presença de um bom técnico na propriedade.

Revista Mundo do Leite